Apreciadores de desde uma boa leitura, até a casca de uma bela fruta, o nobre casal abençoado alimentava seu filho com paz e calma. Esse viria a crescer dotado do mais transparente caráter. Do tato de apreciar os valores mais simples da vida. Se tornaria um aventureiro. Assim, aprendeu a amar a velocidade. Apaixonado por automóveis, piloto de moto, de barco, de avião... Ah, e diz ele que também era surfista e cabeludo.
Em outros ares de interior gaúcho, alguns meses depois, tudo que um homem de raízes simples e batalhadoras esperava era o seu tão sonhado filho homem, depois do nascimento de suas duas primeiras meninas. E lá veio ela. Inacreditável, mais uma mulher... Ainda que, na quarta tentativa, fosse receber a benção do caçula, o encanto da filha mais nova, a pequena bugrinha, conquistou aquele homem e assaltava seus sorrisos. Sorrisos como os que levava a sua amada futura companheira, anos atrás, quando fugia do posto, ameaçando ser preso, para encontra-lá. O amor que aquele casal vivia era a pura prova de que existem seres feitos um para o outro. A conexão de espírito entre eles contagiava qualquer um presente.
Do fundo de uma caixinha de sapato deixada na porta, como a aterrorizavam as brincadeiras de suas irmãs, a bugrinha crescia e se tornava mulher. Mulher de personalidade forte. Guerreira imbatível. Piadista de todo o momento. Como já era o pai, rindo de tudo o que não se fere com risadas.
Cresciam famílias distintas que emocionariam todos ao redor. Que originariam dramas e histórias malucas. Mas era tudo só o começo.
Ainda faz muito tempo que o sonhador conheceu bugrinha, em meio a beleza da praia de Torres. Nessa época, as crianças só brincavam na rua. E, sem o atual perigo, criavam seus próprios riscos em busca de adrenalina. Aventuras de bote, acampamentos, carrinho de lomba, bicicleta a vela, amigo em coma alcoólico, menores dirigindo carros, vôos de moto e todas aquelas clássicas pegadinhas com cocô marcavam a geração.
Os dois tinham uma forte semelhança. Eram filhos de amor nobre e verdadeiro. Ainda na casa dos 20, se apaixonariam até sempre e conquistariam o respeito de amigos e de amigos de amigos do outro. Há 25 anos, casariam na Igreja. E, desde então, estariam juntos na saúde e na doença. Alegria e tristeza. Afinal, o casamento é o contrato da certeza de que vamos querer agüentar dividir o espaço com outra pessoa. Dividir alegrias e preocupações.
Desde recém casados, passaram a viver na parte calma, arborizada e tranqüila da capital, onde dobrariam para quatro as alegrias e preocupações. Ela estava preparada para cuidar até de um urso e amava os sobrinhos como filhos e ele teria a sorte de os dois filhos serem homens. Afinal, tenho certeza que Deus não gostaria de pôr meninas no mundo para cantar "Eu dei um pum! Dei um pum! Grande pum! Hey! Hey!".
Chegaram os dois filhos. Crianças abençoadas que nasceram na sombra de uma grande e majestosa árvore já adulta. Carinho é o que não faltaria aos dois únicos netos dos avós por parte de pai e caçulas de uma grande linhagem de primos, da família da mãe. Dois gurizinhos com peso na alma apareciam ali.
O primeiro, da literatura, um certo capitão, cresceria homem de caráter e lutador. O famoso mocinho sujo das histórias. Pateta nato, mas que não foge a luta.
O segundo, nascido no mês de Setembro, era filho do verão passado. Com poucos meses de vida já seria levado a praia, onde conheceria os primeiros valores da vida. Menino de poucas palavras e sonhos ilimitados. Pequeno selvagem manso que gostava de subir em árvore, andar descalço e comer com a mão.
Em seus primeiros anos de vida, os filhos já aprenderiam com o pai o principio básico de ser homem. A rir e festejar como piratas, brincar como um cão e amar a mulher com sarcasmo. Com a mãe, aprenderiam que jogos de luta explodem o videogame, que o coelhinho da Páscoa traz ovos de cocô para as crianças que nao se comportam e a temer o Bom Velhinho.
Receberam uma infância mágica, criada do amor, disposição e interesse dos pais. Cresceram preparados para crescer, ou nao cresceram. Difícil querer crescer com uma infância tão boa. Com tantos valores nunca esquecidos.
Juntos, viajando ou simplesmente passeando, os quatro descobriam a vida em família. Personalidades complexas em colapso. Amor, proteção, brigas e brigas. Anos de casados.
Na pré-escola, às vezes era difícil deixar a mãe pra ir à aula. E lá ficava bugrinha, costurando na recepção, a disposição da vontade de chorar de seu filho mais novo. Ele via ela como uma fonte de energia e no inicio nao era fácil deixa-lá.
Uma vez, assistia um jogo de tênis de seu irmão mais velho, em um campeonato. O oponente era o mais forte e ele estava prestes a perder feio. No instinto materno, bugrinha caminhou até a grade e lhe disse que ainda dava pra vencer. O pequeno capitão, quase que tomado pela raiva da arrogância do oponente, naquela hora, baixou a cabeça e virou o jogo, marcando sem parar.
Eles nunca souberam realmente se era o que ela dizia que lhes dava segurança, ou o simples fato de ouvir sua voz.
Outra vez, o pai sonhador recebeu uma provinha de vinho no super mercado. O vinho vinha em um cálice pequeno e bonitinho e o filho mais novo pegou para brincar, quando já estava vazio. Antes de entrar no carro, levantou os olhos para o pai e disse: "papai, a gente podia dar esse copinho pra um menino pobre!". Alguns minutos depois, o sonhador olhou nos olhos do primeiro menino de rua que veio a janela do carro pedir dinheiro e disse: "meu filho aqui ganhou esse copinho e teve a idéia de te dar de presente.". O menino pobre, um pouco confuso, analisou o presente e foi embora. Mesmo que o pequeno cálice de vinho não tivesse utilidade alguma para ele, que provavelmente nem tinha muito o que beber, a "boa ação" foi feita. Acho que, com aquela gentileza, o sonhador tentava preservar a inocência do pequeno selvagem de um mundo triste. Queria que os filhos não tivessem receios de serem gentis com o próximo.
Quanto mais o tempo passava, mais os bebês da família se distanciavam fisicamente das velhas crianças que arrancavam gargalhadas dos adultos nas noites de Natal. Fisicamente, é claro, já que praticamente imploraram pela presença do Papai Noel no máximo de festas natalinas que puderam ao longo dos anos. E lá ia bugrinha, se vestir de papai noel de novo. Única mãe Papai Noel. E que nunca seria descoberta. Os presentes entregues pelos pais nunca teriam a mesma graça.
O pequeno capitão se tornava capitão. Responsável, organizado e decidido.
O pequeno selvagem se tornava selvagem. Pouco aprendera a falar e sonhava demais. De espírito, continuava criança.
Os tempos seguintes não seriam dos melhores. Criado da calma e da paz, o pai sonhador permanecia trabalhando como um cão pela sua família. Por mais que doesse ele jamais desistiria e faria tudo por eles. Qualquer gasto deveria ser friamente calculado.
A essa altura, bugrinha também se desdobrava em dona de casa e trabalhadora. Em dias de tristeza, contou aos filhos que os quatro estariam sempre remando no mesmo barco e que nada mais importaria. Manteriam-se fortes uns com os outros, mesmo que tivessem momentos de fraqueza.
Perdas significativas estavam prestes a abalar, nos anos seguintes, a família de bugrinha. E, como toda a grande perda em famílias grandes, muita merda no ventilador seria jogada.
Primeiro a perda de sua mãe desafiou seu pai a viver sem uma parte de si mesmo. Aquele sujeito risonho chorava como um bebê aleatoriamente. Certa vez, contou ao seu neto mais novo que nenhuma doença lhe derrubaria e que morreria de saudade. Faleceu anos depois, lutando com derrames.
O neto mais novo ainda acreditou que pudesse ter sido saudade. O fato é que ali partiu um homem que, na ausência da fala, lhe ensinou que é possível dizer eu te amo apenas com o olhar.
A gargalhada mais contagiante ecoaria num mudo além.
A praia de Torres tornou-se deserta.
A sensação que os dois filhos sentiam era de que a grande copa da arvore, na qual nasceram protegidos pela sombra, perdia raízes e galhos. Tios e primos se afastavam cada vez mais.
A vida nos eixos e bem encaminhada cansava o capitão. Sentia falta da velha infância de pirata. Na vida do menino selvagem faltava alguma coisa. Era compreendido por poucos e insistia em ver tudo com olhos de criança. Sua vida fora dos eixos era muito espaçosa para a cansada terra natal. Deitava no chão e ria enquanto o cusco lambia sua cara.
O avô por parte de pai sempre foi obcecado pelos dois netinhos. Procurava entendê-los em qualquer situação. Ao longo dos anos, passou a eles os mais puros valores de um conceito de nobreza. Deu-lhes a sensibilidade de admirar belas flores e o som dos pássaros cantando. Quando começavam a se tornar homenzinhos, apanhava belas flores no jardim e cochichava em seus ouvidos com o sorriso mais cordial possível: "Agora vai lá e entrega uma pra vovó e uma pra mamãe. Tu vais ver como elas vão ficar bobas.". E ele estava sempre certo. As primeiras flores já teriam donas. As outras seriam entregues toda a vez que os pequenos cavalheiros identificassem uma dama.
Também foi ele que presenteou o pequeno selvagem com o cusquinho mais engraçado de todos. Sonhado por ele e negado por todos, o pequeno canino acabou conquistando o resto da família e tornou-se parte fundamental dela.
Anos depois, seria esse o homem que libertaria os dois piratas para conhecer o mundo. Entre alegrias e contestações, os dois partiram para o outro lado do mundo, onde desbravariam praias e ondas diferentes e viveriam muito aprendizado. Onde viveriam o sonho de suas vidas. E o casal que se desdobrou em quatro era forçado a viver como dois novamente. É verdade que teriam tempo para organizar despesas e namorar um pouco, mas, a essa altura da vida, acho que os filhos já eram quase tudo o que guardavam no peito. E foram aquelas águas de Março que levaram seus corações para o outro lado do mundo.
A toda a hora, procuraram passar força e instrução para os dois meninos de longe. Tentariam sempre mostrar que estava tudo bem, não importando o que acontecesse.
Em pouco tempo, os dois já teriam muitos novos amigos e respeito. Respeito que conquistavam como irmãos. Conhecidos como "os irmãos" quase que mais do que pelos seus próprios nomes.
O capitão foi quem começou o trabalho braçal, enquanto que, ironicamente, o selvagem que nunca aprendera a falar cantava para as pessoas na rua em troca de sorrisos e alguns trocados. Orgulhavam os pais e os avós que lhes restavam. Justificavam a ênfase na voz do avô quando dava risada e exclamava "meus netos", pelas últimas vezes em sua vida. Vencedor de delicada cirurgia, faleceu do coração na recuperação.
O capitão foi quem começou o trabalho braçal, enquanto que, ironicamente, o selvagem que nunca aprendera a falar cantava para as pessoas na rua em troca de sorrisos e alguns trocados. Orgulhavam os pais e os avós que lhes restavam. Justificavam a ênfase na voz do avô quando dava risada e exclamava "meus netos", pelas últimas vezes em sua vida. Vencedor de delicada cirurgia, faleceu do coração na recuperação.
A notícia chegou rapidamente aos olhos do filho mais novo pela internet. Inacreditável que um homem tão forte pudesse nos deixar assim. Somos ingênuos demais. Em meio a tristeza de contar ao irmão, mostrar força ao seu pai e sua avó e enfrentar a rotina pesada de estudo e trabalho diante de seu frágil coração em pedaços, o selvagem aprendeu que era muito mais forte do que pensava. Era forte porque sabia absorver as energias certas. Ao som dos pássaros cantando e sorrindo diante de belas sereias, continuava a atravessar aquele bosque florido, de calção, pés descalços, cabelos ao vento e com a prancha de surfe embaixo do braço, gargalhando em direção ao mar.
Meses se passaram e o sonhador e a bugrinha deixavam a avó e o pequeno cusquinho e se dirigiam ao aeroporto da capital, levados pelos amigos. "Escondidas" em suas almas, carregavam uma ansiedade descomunal. Comemorariam os vinte e cinco anos de casados na terra do canguru. A viagem lhes custara um ano inteiro de trabalho duro. Depois do vôo mais longo da história da aviação, poderiam finalmente abraçar seus filhos novamente, do outro lado do mundo.
Quatro indivíduos se abraçavam naquela manhã, no aeroporto internacional de Sydney. Mais do que toda a saudade que poderiam sentir, aquele casal escancarava a uma sociedade preta e branco o valor mais puro no sentido de viver. Valor que fez com que decidissem comemorar suas bodas de prata em Sydney, durante um mês no pequeno apartamento alugado pelos filhos, dormindo em camas separadas, enfrentando baratas e tomando banhos frios e não em Copacabana em algum hotel de luxo. Muitas vezes eu me perguntei por que e não encontrei respostas, mas finalmente percebo que esses dois amam seus filhos como um ao outro. E sendo os filhos frutos do amor dos pais, eles também são amor.
Meus pais me ensinaram que o valor mais importante da vida é o amor.
O sonhador, a bugrinha, o capitão e o selvagem viajaram pela costa leste da Austrália, como faziam no Brasil, há anos atrás. Cada um desempenhando o seu papel como família. Os quatro estarão para sempre remando no mesmo barco, rindo ou brigando. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença.
Esse texto é uma homenagem ao amor de meus pais, Sadi José Pizolotto Jr e Márcia Silva Pizolotto, e a todos os papais, mamães, vovôs, vovós, tios e tias que fazem de tudo pela felicidade dos filhos, netos ou sobrinhos. Deles vêm as verdadeiras cores do mundo desbotado em que vivemos.




Isso é tudo pessoal!
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